Agô Mãe África
Venho pelas mulheres escravizadas, luta e resistência contra tantas violências. Cabeças que no choro e no desespero trançaram sementes entre os fios firmes de seus cabelos pela preservação dos sabores de casa. Quiabo, inhame, arroz, café, pimentas, feijões, dendê… e ao fortalecer essas plantações, escravizadas cultivavam senso de comunidade, identidade, religião e cultura. De seus filhos, Mãe África, vieram técnicas de cultivo, armazenamento, tecnologias meteorológicas, ferramentas de mineração, forja de utensílios, a descoberta da fermentação, a medicina botânica… A apropriação descabida dos nossos saberes.
Amas de leite que amaram e amamentaram o filho de suas senhoras enquanto ouviam de longe o choro dos seus.
Ganhadeiras, escravas de ganho… Negras de tabuleiro foram as primeiras empreendedoras desse país. Você sabia disso? Saíam às ruas da Bahia e do Rio de Janeiro carregando nos braços e na cabeça seus balaios, cestas e tabuleiros. Vendiam os excedentes das casas e parte do ganho entregavam obrigatoriamente aos seus donos, e a elas restava um saldo, de onde saía a compra de alforrias de filhos e maridos.
Já as libertas, além da livre circulação de seus corpos, tinham também a posse do dinheiro do ganho e a depender de suas funções, adquiriam bens, imóveis e jóias. Se transformaram numa afronta à sociedade colonial. Baianas do acarajé, Tia Ciata e as mulheres do samba no Rio de Janeiro, Dona Dalva e a força do samba de roda no Recôncavo Baiano são algumas das que reverencio aqui.
Das plantations na América do Norte aos campos de cana de açúcar no Brasil, escrevo esse manifesto para que sejamos vistas como protagonistas. Nossas vozes sejam ouvidas, nossas narrativas venham a ser escritas e lidas, forças reconhecidas, mulheres aplaudidas, ideias patrocinadas, corpas convocadas para os palcos principais.
Quero Benê Ricardo reverenciada como a primeira dama da gastronomia brasileira e a mulher que abriu os caminhos para todas as Chefs que hoje têm seus nomes e casas. Quero livros onde a Tia Nastácia está à frente de Dona Benta, um programa de televisão onde Cidinha Santiago reina e ensina para além de Dona Ofélia. E antes que me esqueça, Lena Richard cozinhou na televisão 14 anos antes da famosa e aclamada Julia Child.
Das cozinhas dos senhores, dos quartinhos das casas de família, da feira, das barracas na rua para os restaurantes, revistas, jornais, televisões, cinemas, universidades!
Vamos ocupar todos os espaços com “a nossa gente”: nossos traços, hábitos, modo de falar, tom de voz, jeito de andar, nossos cheiros, temperos, sabores, danças, tecidos, crenças e tudo o que nos faz ser quem somos. Grandiosas!
Tem gente decidindo quem come bem e quem come mal, quem come muito e quem não come nada, quem vive e quem come. Não somos nós! Tem gente decidindo quem leva a fama, o prêmio, o dinheiro, a direção da câmera, a luz dos estúdios, a capa dos livros, o acesso à terra. Não somos nós!
Esse manifesto é pelo despertar ancestral que também pode se dar através da alimentação. Essa responsa é nossa! Esse manifesto é para que a gente crie uma comunidade de mãos negras que além de mexer panelas, se abrace e se cuide. Essa responsa é nossa!
Esse manifesto é para reafirmar que existimos e queremos ocupar todos os espaços. Esse manifesto está em construção e precisa ser escrito com muito mais que o meu par de mãos.
Peço a benção às Iyábassés, cozinheiras, merendeiras, quituteiras, boleiras e chefs!
Isso é um manifesto mas é também uma declaração de amor!
Vamos nos unir!