Este mês a convite da Revista E, do SESC, escrevi um artigo delicioso. Se você passar por uma das unidades, pega uma revista pra ler... ela está recheada de coisas boas. E para quem não vai conseguir, eu trouxe o texto aqui para vocês. Pra celebrar que talvez eu volte a escrever aqui nessa rede. Não é que não tenho escrito, mas é que tenho escrito pesquisas grandes, feito viagens longas e elas acabam tomando muito o meu tempo. Esse ano já estive em Altamira, Santarém, Belém e Fortaleza. E semana que vem estou em Belo Horizonte. Tudo isso enquanto me preparo para a chegada do meu netinho, Jorge. Então vou por partes. Tudo bem, né? Vou aproveitar e trazer aqui algumas imagens que amo e salvo numa pasta do Pinterest que chamo de “Ilustrações Comestíveis”, espero que goste! Para saber de quem é, basta clicar na imagem.
Sou do camarão ensopadinho com chuchu
Por Patty Durães
Para entender o que é cultura alimentar, precisamos nos permitir um mergulho nas fruteiras, despensas, geladeiras, quitandas, mercearias, bodegas, mercados, feiras livres e barracas de venda de comida a fora. Quando eu era criança, meus olhos brilhavam com bacias de bife à rolê que minha avó me ensinou a preparar com maestria: uma fatia de carne, um pedaço de cenoura, outro de linguiça defumada, ramo de salsinha, fatia de bacon e depois enrola apertadinho, espeta palito de dente para fechar e volta para a marinada. A gente recheava hoje para preparar amanhã. Minhas lembranças mais amorosas são também da adolescência, na busca da catalônia mais verdinha na feira, a compra do corte certo de acém no açougue, as frutas da quitanda e o horário de comprar pão na padaria.
Dei muitas voltas profissionais até perceber que precisava trabalhar com comida, uma vez que sempre pensei em comida o dia todo. Como viver dessa vontade de falar de comida e entender o Brasil a partir dela? Há um provérbio africano que diz: “Quando não souber para onde ir, olhe para trás e lembre-se de onde veio”. Nesse processo, entendi que sempre fui o que hoje chamo de pesquisadora de culturas alimentares. Minha avó diria que sou xereta mesmo e eu não poderia discordar dela. Me interesso por saber se você compra mandioca no mercado ou do rapaz que vende no carrinho de mão na rua. Se guarda o pó de café na porta da geladeira ou num vidro no armário, se refoga arroz com alho, com cebola ou com os dois. Se faz salada de escarola, se escalda a couve, se pica o tomate na tábua ou na mão, em cima da panela na hora de cozinhar.
Cultura alimentar é uma área de estudo que investiga práticas, costumes, rituais e tradições relacionados à alimentação em diferentes culturas e sociedades. É uma abordagem interdisciplinar que combina antropologia, sociologia, história, nutrição, gastronomia e outros campos para entender a relação das pessoas com a comida em diferentes contextos. Nós podemos abordar temas como produção de alimentos, técnicas culinárias, identidade cultural, questões de gênero, raça e poder, impactos ambientais e saúde pública. O objetivo é entender como a alimentação é parte integrante da cultura de um povo, e como pode mudar em resposta a fatores sociais, políticos e econômicos.
Uma explicação bonita para afirmar a nossa capacidade de xeretar a sacola da feira ou o carrinho do mercado. Esse é o nosso campo de estudo. E como amante da comida brasileira, meus instrumentos de trabalho também têm nomes bonitos como cumbuca, caneca, tabuleiro, peneira, pilão, tipiti, cesto, caçarola. E muitas das palavras que permeiam nossas cozinhas existem para contar a história do nosso país a partir do que comemos. Nossa comida é afro-indígena com influências europeias. Dos que aqui já viviam, preservamos o consumo de pescados e de mandioca em suas diferentes formas. Tapiocas, açaí, moquecas e pirões não me deixam mentir.
Com a chegada de africanos escravizados, essa diáspora que em nada nos orgulha, sementes e preparos fincaram raízes aqui. Dendê, quiabo, café, feijão fradinho, melancia, maxixe, inhame… Os menos avisados pensam que são frutos brasileiros e são surpreendidos quando descobrem que vieram da costa. E que também de lá, de onde o sol brilha forte, costumes como caldos, fermentações e macerações descobertas ou inventadas nos permitem beber cafezinho coado, vinhos e cervejas, e comer pães bem assados em fornos ancestrais. Para te deixar com água na boca, conto que com eles vieram mingaus, canjicas, mungunzá, sarapatel, caruru, xinxim, cuscuz (sim, o cuscuz é uma técnica africana), vatapás, cozidos e muito mais.
Essa busca por domínio de terras férteis para plantações de cana-de-açúcar fortaleceu a economia das grandes navegações entre os continentes e da construção de engenhos por vários estados. E não tem como falar de engenho e não citar a “boazinha” mais “marvada” do Brasil: a cachaça ou pinguinha. Com europeus, aprendemos a consumir açúcar através de compotas, geleias, bolos, tortas e docinhos. Pernambucanos e mineiros entendem muito bem de quitandas, rapaduras e doçarias portuguesas. Baianos e cearenses são mestres nas misturas com frutas nativas. Licores de jabuticaba e jenipapo são bebidas festivas assim como cajuadas, figadas, mangadas, goiabadas e tantas outras “adas” que encontramos nas vendas.
Comida da terra, da costa, do reino. Comida de festas católicas e de terreiros de religiões de matriz africana encantam nossos paladares. Somos comensais de merenda, farnel, matula ou marmita. Especialistas em “PF” (lê-se pê éfe), o amado prato feito do brasileiro, que vai mudando de nome de acordo com a região. Comercial, executivo, quentinha, prato do dia, à la minuta. Arroz e feijão é de lei, tem sempre. E com a duplinha mais famosa vêm os acompanhamentos como fritas, salada, espaguete ao sugo, farofa e as misturas: bife de carne, filé de frango, ovo frito, carne de panela, fígado acebolado, bisteca de porco.
Passei muito rápido por um preparo que diz muito da nossa cultura alimentar: a farofa. Cada família tem a sua receita – sequinha ou molhadinha, com bacon ou sem, com farinha de mandioca torrada grossa ou fina, com farinha de milho ou de pão, com feijão, com cebola, com alho. Puxada no óleo de soja, no azeite de dendê ou na manteiga de garrafa. Tem coisa mais brasileira do que farofa?
Eu espero que esse texto te encha a boca d’água, te dê vontade de ir para a cozinha preparar algo gostoso, que te faça passear por barracas e gôndolas com o olhar mais atento e que, acima de tudo, te faça sentir muito orgulho de ser brasileiro. Sim, pode continuar comendo macarronadas suculentas nas cantinas italianas, sopas de cebola ao estilo francês, sushi e sashimis asiáticos, pokes vietnamitas, tacos mexicanos, hambúrgueres americanos, esfihas árabes, yakisobas, croissants e temakis.
Mas não deixa de enaltecer nosso pão de queijo, picadinho, galinhada, baião de dois, feijão tropeiro, galinha caipira, pingado de boteco, os peixes dos nossos rios e mares, nossas frutas nativas como caju, cajá, cambuci, pitanga e tantas outras. Porque cultura alimentar é Brasil, mas também é mundo e assim sigo, viajando e comendo. Pesquisando, coletando histórias, registrando saberes e construindo memórias por onde passo.
E para finalizar, peço licença para trazer um trecho de “Disseram que voltei americanizada”, imortalizada na voz de Carmen Miranda (1909-1955): “Enquanto houver Brasil, na hora das comidas, eu sou do camarão ensopadinho com chuchu”.
Patty Durães é pesquisadora de culturas alimentares, especializada na influência das heranças afrodiáspóricas na culinária brasileira. Com experiência em instituições como Masp, Itaú Cultural, Sesc, Senac e Sebrae, autora do curso Muito Além da Boca, e palestrante do TEDx São Paulo. Em 2024, foi professora convidada na Dillard University, em New Orleans, Estados Unidos, para falar de comida brasileira.
Que lindo texto, zamô! E que lindo acompanhar essa tua jornada e ver você tão gigante! 😍