Hoje bateu saudade desse encontro cheio de emoções de uma primeira vez.
Primeira vez que chamei pessoas para me ouvirem falar sobre a construção do curso “Muito além da boca, um passeio transatlântico pela comida afrodiaspórica no Brasil”. Dividir meu processo, as pesquisas, leituras, descobertas e as pessoas envolvidas nas aulas foi muito legal. A roda de conversa expandiu horizontes, foi trazendo novas percepções, inspirando coletivamente cada uma das 30 pessoas participantes a repensarem escolhas, hábitos e principalmente comportamentos. O Espaço Casca, da Carol Dini e da Bruna Martins, nos acolheu em suas almofadas e sabores. Não vimos a hora passar!
Falar de sistemas alimentares é algo que me motiva profundamente. A terra, a semente, o plantio, semear e colher, distribuir, armazenar, preparar. Utilizar, reutilizar. E hoje eu sei que desde pequena já era uma pesquisadora de culturas alimentares em construção, pela criação e responsabilidades que tive ao morar com três velhinhos bastante exigentes: Bisa, Nana e Loli.

Minha avó, Dona Amélia Wanderley Bento, tinha milhões de manias. Arroz e feijão eram feitos apenas com alho na refoga, nada de cebola. A cada cinco panelas de pressão de feijão, três eram com paio e linguiças. A qualquer dia e hora que abríssemos a geladeira de sua casa encontraríamos uma tupperware oval, transparente e grande, cheia de um feijão clarinho, cremoso e muito bem temperado. Quando ela cozinhava por horas uma peça de carne de panela e nos servia com tomates, cebola e ervas, pedia desculpas fazendo caras e bocas:
_Ah perdão, hoje só tem carne de segunda!
(E nós entrávamos em êxtase ao saber).
Das panelas velhas, amassadas, com bordas queimadas e meios super ariados, saíam sempre verduras e legumes espetaculares. Às vezes catalônias refogadas com bastante alho, que ela amava comer com arroz e feijão fresquinhos, e um ovo estalado, daqueles que ficam com as bordas crocantes e gemas molinhas, sabe? Fora as macarronadas de domingo com salada de maionese, ou as tardes que passávamos sentadas à mesa vendo programa de televisão e recheando bife à rolê. Era um baldão com tiras de cebola, linguiça, bacon, vagens, cebolas, cheiro verde ao lado do bifes de patinho batidinhos e de um pratinho com os palitos de dente.
Tirando o dia do bife a rolê no boteco da esquina, quem ainda prepara a iguaria em casa? Faz tempo que não vejo uma travessa dessas no centro da mesa!
Outra curiosidade dessa cozinha da Dona Amélia é que ela também servia de pista de dança. Minha família cozinha, come e dança com a mesma naturalidade e alegria. E de presente, deixo para vocês uma playlist que fiz e que chamo nostalgicamente de ‘Família Wanderley”. Me promete que vai ouvir cozinhando e rebolando?
O irmão da minha avó, o mais metódico de todos, tinha manias que hoje sinto falta. Dorival Celso Wanderley, nosso Loli. Vivia de chapéu, tomava limonada todo santo dia (e nunca adoecia), odiava cebola na comida, religiosamente almoçava às 10:30, jantava às 17:30 e dormia às 19h. Todos os dias! E sempre que possível ele “requentava” feijão e arroz numa mesma frigideira, e jogava uns pedacinhos de queijo para derreter. Nossa, que lembrança boa, eu amava quando ele fazia isso e me dava uma colherada. Nunca mais comi arroz com queijo. Fiquei muito gourmetizada. E a graça era fazer a ele sempre a mesma pergunta para que a pérola da resposta viesse assim:
_Mas Loli, ainda são 10:30 da manhã e você já vai almoçar?
_Sim… Quem gosta de mim sou eu!!
Que lição de autocuidado, não é? Por que esqueci disso por tanto tempo? Por que não aplico o #QuemGostadeMimSouEu na minha vida?
Já a Dona Yolanda Wanderley dos Santos, ou a tia Nana, era a mais regateira dos três irmãos e minha madrinha. Tomava uma tacinha de vinho quase sempre com as refeições. Não se dava ao trabalho de ficar muitas horas na boca do fogão mas também cozinhava lindamente e dizia orgulhosa que no início da vida adulta ela tinha sido doceira da Doceria Paulista, ponto famoso da aristocracia na década de 70 lá nos Campos Elíseos. Fazia os fios de ovos! Depois se casou o Deusdedit, o tio Guinho, tocador de banjo e cozinheiro de navio da marinha. Das panelas desse homem, dizem que saíam maravilhas absurdas. Eu era muito criança e só o que me recordo era das galinhas que ele criava no quintal, matava em ocasiões especiais e as pendurava de cabeça pra baixo na maçaneta da porta da cozinha, para o meu profundo pavor.
Voltando à tia Nana, ninguém faz pudim de leite como ela fazia. Alto, muito cremoso, sem furinhos e sem receita. Tudo no olho! Até porque, o que ela queria era terminar logo e ir “ver vitrine” na rua! Essa senhora desencarnou com quase 100 anos e me deixou inúmeros ensinamentos sobre leveza, humor e “regatisses”! Vivíamos dançando e fazendo caras e bocas, em qualquer lugar!
É muito confortável dividir minhas lembranças de infância. Principalmente as memórias alimentares, pois são muitas, são divertidas, brasileiríssimas, caseiras. Representam a minha realidade de ontem e de hoje. Eu ainda sou a mesma Patrícia que vivia na cozinha prestando atenção e tomando bronca por esquecer uma tampa de panela na boca do fogão.

E quando rodo estradas pra falar delas, olho para as mulheres que me ouvem com olhos atentos e corações quentinhos e peço: volta pra cozinha! Para as mulheres negras eu digo: sei que esse era um lugar de dor pra todas nós que lutamos muito (e seguimos lutando) pra sair dele, mas só assumindo o comando das nossas panelas é que vamos proteger a nossa família das mazelas da indústria dos ultraprocessados. Só sabendo de onde vem a nossa comida protegemos a vida dos produtores agrícolas. Só entendendo a importância do alimento in natura na composição das nossas refeições é que fugiremos dos remédios. Um corpo hidratado, bem alimentado e seguro é um corpo que pensa melhor e toma melhores decisões, cria projetos mais potentes e se projeta no mundo.
Então sim… volte para a cozinha!
Faça da cozinha um local de amor, de diversão, um paraíso de prazeres, campo de descobertas, um incentivo à coragem de se arriscar um pouco mais. Errar faz parte e queremos o direto à vulnerabilidade do erro. Ninguém é suprassumo em tudo. Erra uma, duas, três vezes e depois vai acertando, vai melhorando. Deixa tudo o que você precisa à mão, faz as comidas que você ama, tenta fazer as que você nunca tentou antes, se permita novos sabores, novas texturas. Controle o sal, diminua o açúcar, melhore as gorduras e encha o seu prato de cor.
Tudo isso é ancestralidade. Ela não ficou no passado, ela está aqui no hoje e te pedindo pra andar de mãos dadas rumo ao amanhã. Bell Hooks diz que amor é o que o amor faz, então faça amor com você!
E faz amor comigo também, me diz o que tem achado da news e lança sugestões de pauta! Esse local da escriba amadora é muito solitário e inseguro.
Um xêro, Patty.
Ahhhh escriba, que amadora que nada! O verdadeiro escriba consegue tirar sorrisos do canto da nossa boca enquanto lemos. Eles nos transportam - nesse caso - pras cozinhas e nos fazem sentir cheiro de comidinha temperada com alho. Obrigada por trazer tudo isso a memória.
Eu me arrumo pra te ler! Passei um café, fiz um ovo mexido, me aprumei de pernas cruzadas no tapete da sala porque sabia que precisava de tempo pra ler, voltar mil vezes nas frases, ficar imaginando, saboreando tudo. Requentar feijão e arroz numa mesma frigideira é um dos meus prazeres mais íntimos! Que bonito saber de tudo isso, Patty. Que vontade de passar uma tarde inteira na cozinha papeando com você! É sobre isso, né, seguir cozinhando e cantando e dançando e vivendo? Mil beijos!