“O mundo na cabeça e o futuro nas costas”
Ou como olhar para o alimento a partir de uma cosmovisão afrocentrica
Eu fui batizada na igreja católica pela minha família, estudei em colégios católicos particulares para ser “alguém na vida” e já adulta, reproduzindo uma herança colonial e realizando um sonho material, me casei de véu e grinalda. Depois, por uma tradição também familiar e um medo do que minha avó chamava de paganismo, batizei as minhas filhas também em pias católicas. Após o nascimento da segunda menina fui me cuidar num terreiro de umbanda e encontrei conforto, saúde, signo, símbolo e significado. Foi quando o amor venceu o medo. Sim, eu tinha medo desse desconhecido que me habitava desde criança com suas diversas manifestações.
Nos últimos anos fui me aproximando do candomblé, e para além de visitar as belíssimas festas, de celebrar ritos de iniciação bem importantes de pessoas que amo, comecei a me cuidar, entendendo que esse cuidado é um dever ancestral. A partir daí fui compreendendo mais a relação do alimento com nossos corpos afrodiaspóricos e com nossas divindades. Fui entendendo o alimento como tecnologia, plataforma preta de comunicação, mensageiro de mundos paralelos.
Dei o meu borí, minha filha mais velha deu o borí dela e esse ano demos o borí da mais nova. Assim, caminhos, percepções, leituras, mensagens, sonhos, certezas, incertezas, toques, sutilezas, forças e fraquezas foram se achegando nas nossas vidas. O movimento é muito bom e muito bonito. Dar o borí significa “alimentar, dar de comer, à sua cabeça” e para quem se interessa pelo assunto, recomendo o mergulho. Poderia trazer aqui alguns materiais, links de artigos, mas não tem nada melhor do que conversar com alguém que leve o sacerdócio a sério. Visite uma casa de santo, dê a você esse presente.
Recomendo visitar as obras do artista baiano Ayrson Heráclito que tem uma série chamada Bori, de 2019. Essa foto acima é desse trabalho autoral, uma representação da orixá Oxum, que cuida da minha cabeça, e que tem como um dos alimentos preferidos e ofertados nesse ritual, o omolocum.
“Orí mi o ṣe rere fún mi”
Minha cabeça faça coisas boas para mim
Li num blog, há muito tempo atrás, mas não tenho mais a referência, que mulheres africanas carregam o mundo na cabeça e o futuro nas costas. E dá para fazer muitas interpretações sobre esta frase. Não vou me estender, mas gostaria de falar um pouco sobre a arte de carregar coisas na cabeça. Não é muito surreal o equilíbrio, a força, a noção de tempo e espaço que esses corpos têm?
Foto de Michael Sherida, Burkina Faso (África)
Trata-se de uma herança, um ensinamento que começa a ser passado para as meninas (e alguns meninos) desde a primeira infância. Há quem diga que elas são capazes de carregar 70% do peso do próprio corpo. Há quem defenda que essa técnica era e ainda é utilizada para deixar as mãos livres para cuidar do bebê, sempre agarrado à mãe. Sim, tem técnica, tem um turbante enroladinho no topo da cabeça para ajudar no balanço entre corpo e carga. Há quem acredite que assim elas prejudicam menos as costas, mas também há quem prove o contrário. Na época vitoriana a técnica foi levada às meninas nobres, mas com livros, para que arrumassem o andar, a postura. Quem diria que aprenderam “modos” com mulheres africanas. Enfim… Não encontrei estudos que explicassem a raiz desse carregar mas encontrei muitos vídeos de estrangeiras tentando carregar coisas leves na cabeça em países como Ghana, e dei bastante risada da inabilidade. Que eu também tenho!
Na cabeça essas mulheres transportam insumos pesados como inhames ou sacas de farinhas ou grãos, alimentos como peixes fritos, tecidos para vender, roupas sujas a caminho do rio ou limpas a caminho de casa, cabaças com água limpa, frutas coloridas, galinhas vivas ou mortas, lenhas... Literalmente o mundo na cabeça. E na maioria delas, nas costas, os filhos. O futuro.
Mais do que ficar aqui falando sem fim, fiz um apanhado de imagens lindas nessa pasta aqui do Pinterest e te convido ao passeio.
Mas Patty, pessoas carregam coisas na cabeça pelo mundo todo. É verdade, mas eu tô aqui pra cada vez mais falar do meu povo, das mulheres pretas e seus saberes ancestrais. Tô aqui pra enaltecer o que sempre foi rico, belo, poderoso, apropriado, apagado, roubado.
Para saber sobre outros povos e outras culturas alimentares… É melhor buscar outras fontes.
Minha revisora Aniké, aka minha filha maravilhosa, me despertou para um trecho do belíssimo Torto Arado, de Itamar Vieira Junior. Trecho onde a massa do buriti sendo carregada na cabeça de uma das personagens e o líquido gordurosa e alaranjado escorria pelas costas causando vergonha a Belonísia e Bibiana.
Nos vemos na próxima edição. Obrigada por continuar por aqui! E muito prazer a quem chegou agora. A casa é sua!
“Assuma a grandiosidade do seu Orí.”
Pai Rodney William
Incrível, Patty. Me fez lembrar que na infância, vi muitas mulheres carregando lata de água na cabeça, porque ainda não chegava água lá no alto do morro. Ficava curiosa, vendo aquele movimento pela janela, sem entender muito bem o que passava, porque ainda era bem pequena. E pasme, essa cena era aqui mesmo, no RJ dos anos 80, não era no interior não.
Affff que texto delícia, minha querida!